Wednesday, 17 de April de 2024

Mais de trinta

Esqueça seu passado, não pense no futuro: vire uma barata!

Esquecer o passado e não pensar no futuro é praticamente o mesmo que viver como uma barata

Esquecer o passado e não pensar no futuro é praticamente o mesmo que viver como uma barata

Você já deve ter lido, principalmente nas redes sociais, alguma coisa como: “Viva só no presente, esqueça o passado, deixe o futuro para lá…” Ou ouviu que a depressão é o excesso de passado e a ansiedade é o excesso de futuro em nossas vidas. São frases que pretendem nos tranquilizar, nos dar forças para seguir em frente em um mundo cada dia mais complicado de se viver. Tudo bem.

Mas, geralmente, dar crédito a este tipo de comentário só nos oferece mais ansiedade: tendemos a nos culpar por nossa angústia, afinal se há um mal-estar, a culpa é nossa porque estamos ligados ao passado e preocupados com o futuro. Então nos esforçamos para não pensar à frente, buscamos esquecer as memórias tristes e — nada! Raríssimas vezes damos conta de deletar estas preocupações.

E é claro que este tipo de atitude não vai dar em nada! Você não é um besouro, uma barata, ou uma joaninha toda bonitinha. Você, adivinhe só, é humano!

Explico: o cérebro humano vem se desenvolvendo há mais ou menos 7 milhões de anos (há diferenças entre as diferentes espécies de Homo), exatamente para aprimorar a memória de longo prazo e para projetar planos de futuro.

A coisa funciona mais ou menos assim: desenvolvemos, neste tempo todo de existência, uma super memória (nem dá para comparar com a de outros animais, embora existam alguns capazes de se lembrar também), pois, então, desenvolvemos esta super memória para que hoje — no presente — pensando no que nos ocorreu — no passado — possamos nos preparar e nos organizar para não sofrer os mesmos perrengues — no futuro.

O que machucou a gente lá atrás deve ficar na mente para que, com a intenção de evitar a mesma dor, a gente consiga construir um futuro mais saudável. É a coisa mais simples do mundo; é sobrevivência da espécie.

Este tipo de conversa sobre viver só no presente é coisa de gente equivocada, pra não falar que é coisa de gente mal-intencionada.

E como tem gente equivocada quando se trata destas coisas da mente e cérebro! Eu tive uma experiência aterrorizante neste mundinho das “boas dicas” para o bem-viver (tá, meio exagero, mas me incomodou bem…).

Há alguns anos fui a uma terapeuta porque estava muito desesperançada a respeito de como minha vida caminhava. Sim, eu tinha memória suficiente para entender que as coisas chatas que vivera pareciam estar se encaixando novamente — de um jeito que este encaixe completaria um quebra-cabeças que, eu já sabia, ia dar em tristeza.

Certamente, eu não esperava que a terapeuta me arrumasse uma fórmula mágica para mudar tudo e, assim, alcançar a felicidade (seria bom, mas não sou tão boba: toda modificação de vida é processo — e dói). Muito bem, aguardei o “veredicto”.

Então a moça virou para mim e disse: “Você tem que trocar toda a sua pele!” Lógico, entendi a metáfora, mas não, não mesmo. Eu já tinha mais de 35 anos, tinha uma história rica de elementos de vida. Eu não ia trocar a minha pele, esquecer quem era, virar uma cobra, sei lá. Saí e nunca mais voltei.

Sou muito favorável ao acompanhamento dos “psis”, mas é preciso ouvir gente que entenda verdadeiramente da condição humana — e procurar se afastar do senso comum que só nos faz sentir mais e mais inadequados — ou que procura nos transformar em répteis trocadores de pele!

A verdade é que você não encana à toa. Sua preocupação é até um dos sintomas da evolução.

Alguns vão me dizer que é possível, sim, deixar a inquietação de lado, que há alguns momentos, mágicos momentos, em que excesso de passado e ansiedade pelo futuro realmente desaparecem de nossas cabeças…

Concordo com vocês. Às vezes, a gente sente uma coisinha gostosa que, numa fração de segundo, nos faz rir o coração, que toma a frente de toda racionalidade e de todo o medo. Acho que essa “coisinha” especial se chama fé (não estou falando de religião, por favor), mas este é um assunto grande, pra um outro dia, quem sabe…

Então, voltando à conversa de hoje, não se fie nessa sabedoria de boteco, nessa coisa nonsense das redes sociais, nem entre numa de “trocar de pele”. Você é o que você viveu, e será muito mais feliz se conseguir pensar em seu futuro com os instrumentos que seu passado lhe deu neste tempão de evolução. Tenha paciência. Vai dar tudo certo!

(Ah, e só pra esclarecer, já que usei a palavra lá em cima, depressão não se resolve com frases de efeito. Depressão é doença que pode afetar a qualquer um e deve ser tratada com o mesmo respeito com que se trata uma cardiopatia ou uma diabete.)

Ana Issa é socióloga, pós-graduada em Teoria da Comunicação e Comunicação e Mercado.

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