Tuesday, 23 de April de 2024

Mais de trinta

Desterrados: Uma história de Zumbi em São Paulo – Capítulo 4

Capítulo 4

Já era manhã quando Carlos estacionou a viatura dentro do terreno de um prédio comercial em construção. O edifício parecia estar em completa segurança, pois ao redor do prédio existia uma cerca de chapas metálicas que parecia intacta após uma rápida checagem feita a bordo da viatura. Ao que parecia, o único modo de acessar o prédio era através do portão, estava fechado somente pelo trinco e foi fácil de abrir. Após entrar com o carro, Carlos abaixou as trancas que prendiam o portão ao chão, garantindo assim um pouco de segurança.

O prédio possuía paredes, mas as portas de acesso estavam fechadas com cadeados, o que lhe dava uma certa segurança de não haver nenhum zumbi ali dentro – e se existissem, não poderiam sair. Sim, durante aquela noite em que dirigiu do Centro de Detenção Provisória de Pinheiros até ali, na Vila Jaguará, ele pensou em diversos nomes e possibilidades para aquelas coisas que caminhavam. Sua avó diria que eram assombrações, mas os filmes que assistiu na adolescência nas madrugadas da Globo afirmavam que eram zumbis e ponto final.

Embora seu lado racional lhe dissesse que um prédio ou complexo comercial tivesse maior probabilidade de fornecer mantimentos, Carlos preferiu estacionar em um daqueles pequenos prédios de dois ou três andares, ainda em construção. Eles não tinham comida, é verdade, mas eram provavelmente seguros de zumbis e possuíam paredes que mantinham aquelas coisas do lado de fora.

De arma em punho Carlos foi até o portão que dava acesso a pequena garagem daquele prédio. Segurando a maçaneta do lado de fora, o presidiário deslizou o portão no trilho enquanto dava um passo para trás de cada vez, acompanhando o deslocamento e permanecendo protegido pela placa de aço. Não iria deslizar o portão de uma vez, pois duvidada que tivessem colocado óleo no mesmo e tinha certeza que o barulho poderia avisar aquelas coisas que ele estava por ali.

Após a abertura, Carlos ficou alguns segundos parados ali fora esperando o bote. Nada, silêncio total. Já se considerando um expert em relação aos mortos-vivos, Carlos respirou fundo sentindo o aroma que emanava de dentro da garagem. Nada além do cheiro de pó, que com certeza atacaria sua rinite alérgica em algum tempo. Voltando até o carro, Carlos liberou o freio de mão e empurrou o veículo para dentro da garagem, fechando o portão atrás de si. Era hora de fazer um experimento que possivelmente salvaria sua vida.

Entrando novamente no carro roubado de um agora defunto policial, Carlos sentou-se atrás do volante e ligou o rádio da viatura. Embora nunca tivesse operado um daqueles antes, ele havia presenciado o manejo daqueles aparelhos diversas vezes enquanto era conduzido para delegacias, fóruns e uma ou outra extorsão após capturas.

Com alguma apreensão, afinal não era garantia que o rádio funcionaria, o prisioneiro ligou o mesmo e começou a transitar entre as frequências existentes no mesmo. Do começo até a ponta do seletor não se ouviu nada além de estática.

–   Isso não significa nada, ninguém fica o tempo falando nessa merda…

Carlos então voltou o seletor para a frequência padrão da polícia, a que estava selecionada quando ele começou a operação. Se alguém estivesse operando um negócio daqueles provavelmente usaria a mesma frequência, afinal havia mais policiais na rua (e equipamentos) do que loucos com um rádio amador dentro de casa.

Segurando o botão do fone que era levado até a boca, Carlos respirou fundo e falou esperando que alguém o respondesse: – Tem alguém na escuta? Aqui é o Carlos e eu sou um sobrevivente em São Paulo… tem alguém aí? Alguém ainda me escuta?

Nada, silêncio total por mais de um minuto. Ainda esperançoso, Carlos repetiu a chamada mais três vezes, dando espaços de um minuto entre elas na esperança que o ouvinte tivesse dificuldade em operar um daqueles ou estivesse impedido de falar. Como quatro tentativas não havia gerado nenhum tipo de contato, Carlos desistiu e recolocou o fone no suporte. O rádio ficaria ligado constantemente e de hora em hora ele tentaria novamente entrar em contato com alguém.

– O rádio! – E então o prisioneiro olhou o console da viatura, se dando conta que não havia nada ali. O prisioneiro nunca havia se dado conta que o governo não pagaria um policial para ouvir música e, naquele momento, xingou a todos. Em todos os filmes de terror que ele assistia havia aquelas transmissões de emergência na rádio dando instruções para onde ele deveria ir.

Imediatamente Carlos abriu novamente o porta-luvas, não encontrando nada. Bom, aquilo não significava nada. Um rádio a pilhas era quase tão fácil de ser encontrado como camisinhas, só era preciso procurar. Saindo da viatura, Carlos pegou novamente a pistola e olhou em volta, checando cada canto da garagem.  Se houvesse um aparelho de rádio o mesmo estaria no armário de algum dos operários ou espalhado pela construção.

Depois de cinco passos decididos, Carlos saiu novamente da garagem, ganhando espaço ao pátio da construção. Com a arma na mão, ele virou-se de frente para o prédio em obras e analisou onde naquele edifício de três andares poderia achar um rádio movido a pilha e também um pouco de comida. Naquela madrugada enquanto dirigia para chegar até ali ele parou em uma padaria abandonada e pegou quatro pacotes de pão de forma, pois todo o resto estava abandonado. Carlos até considerou a possibilidade de se aventurar em mercado de bairro, mas os riscos eram muito altos, pois ele teria que se aventurar em um comércio cheio de obstáculos e com saídas estreitas, feitas para evitar a saída de possíveis ladrões.

Recebendo na cabeça as primeiras gotas de chuva em mais de dez anos, ele decidiu que um prédio se construía de baixo para cima e, quando a estrutura estava pronta, assim deveria ser também o acabamento, portanto a maior possibilidade de êxito estaria no primeiro andar. Erguendo e engatilhando a pistola calibre .40, Carlos caminhou decidido e com passos largos em direção a porta do prédio.

Sem pensar direito nas consequências, Carlos abriu a porta e deixou-a aberta, afinal era mais fácil enxergar através da luz do sol com as portas abertas. Ele ainda não sabia, mas aquela pequena decisão teria papel fundamental na manutenção da sua vida.

Enquanto o sobrevivente ganhava acesso ao primeiro cômodo daquele edifício, alguma coisa acordou do seu hiato em morder os restos de um rato. Sim, ele sentia que havia uma presa maior e mais saborosa ali dentro. Naquele momento o rato iria esperar, pois o zumbi tinha coisas mais importantes com que se preocupar. Após um momento de hiato, durante o qual ficou parado, apenas sentindo a direção de onde vinha aquela sensação de sangue fresco e de um coração batendo. Sim, ela viria dali.

Em um dia normal seu deslocamento poderia atrair a atenção do sobrevivente, mas seu cinto de ferramentas estava vazio. Ele não sabia o que era aquilo, mas não era importante, pois as utilidades das ferramentas para ele acabaram quando ele as arremessou contra o maldito do vigia noturno que o havia mordido. É claro que o zumbi não lembrava daquilo tudo, mas é importante saber que existem pequenos fatores dentro da história e do destino de cada pessoa que poderiam fazer diferença na vida de um sobrevivente.

Despreocupado, Carlos remexia nas coisas dentro do que seria uma sala comercial para aluguel. O barulho causado pelo arrastar de caixas e sacolas mascarou os gemidos e o deslocamento da coisa que, faminta, caminhava em direção ao prisioneiro.

O zumbi viu a presa através de olhos enevoados pela morte. – Hmmmaammmm… – E Carlos olhou para trás, erguendo a mão esquerda com o rádio a pilha que havia acabado de encontrar. Aquele movimento errado complicou a situação, pois ao invés de disparar dois cartuchos na coisa apenas ligou uma estação de rádio que tocava estática no lugar de músicas clássicas românticas, que sempre embalaram as ondas da Antena Um.

Os segundos ocupados pelo disparo com o rádio foram suficientes para o zumbi se jogar em cima do prisioneiro. Mesmo sem boa parte do rosto e com o tórax em carne viva, expondo um coração apodrecido, o morto-vivo ainda era capaz de atacar alguém. E ele o fez, jogando o corpo e os braços estendidos em cima de um estupefato Carlos, que assim como fizera quando assassinou aquele menino no posto de gasolina, deu dois disparos no peito do zumbi.

As mãos estendidas do pedreiro se prenderam na roupa bege do prisioneiro, que viu enquanto gritava, com seus apelos e ofensas misturados à estática da rádio, a mandíbula vermelha de sangue se aproximar de seu rosto, no que seria um beijo mortal para seus sonhos de permanecer vivo.

– Vai pra puta que o pariu! Não vou morrer hoje! Nem fodendo! – E reunindo esforço, Carlos empurrou o zumbi, usando a arma na mão direita para dar uma coronhada na cabeça daquela coisa. Se dois tiros não foram suficientes para impedir o avanço do zumbi, ele é que não faria uma nova tentativa, não naquele momento. Aquele movimento desesperado funcionou, pois, o zumbi soltou-o do enlace mortal e recuou dois passos.

– Morre, filho da puta! – Carlos avançou em cima da coisa morta e deu outra coronhada na cabeça, quebrando o que antes era a órbita ocular de um pai de família. E outra pancada, seguida de um quarto golpe, responsável por tingir metade do cabo da arma de vermelho após fraturar e penetrar no crânio do morto-vivo. Carlos não percebeu, mas após o dano causado pelo cabo no cérebro o zumbi caiu ao chão desligado, como se tivessem puxado o cabo de energia do inferno da tomada.

Andando para trás, levantando-se e ainda digerindo o que estava acontecendo ali dentro, Carlos respirou fundo e vomitou tudo o que havia no estômago. Ele era um assassino, mas havia uma diferença entre atirar em uma pessoa e em fraturar o crânio de alguém com uma arma. Curvado para frente, com as mãos segurando a arma e o rádio, o prisioneiro abraçou o abdómen e colocou para fora uma segunda onda de vomito.

Respirando com pedaços de pão colados à barba, Carlos ouviu o arrastar de pés que muito em breve se tornaria tão familiar quanto o latido que precede a mordida. Endireitando-se, ele viu aparecer na porta do outro lado da sala um segundo zumbi: uma menina de aproximadamente sete anos de idade usando um uniforme de escola pública da cidade de São Paulo. Aquela era Juliana, a filha do pedreiro que acabara de tentar comer um pedaço de sua pele. É claro que Carlos nunca saberia o nome e os sonhos da pequena menina, mas isso não mudou o fato que aquele marginal se sensibilizou com a visão de uma criança que andava segurando as próprias tripas, que tinham marcas de mordida.

Decidido a não atrair mais atenção, Carlos começou a mexer as pernas para sair dali o mais rápido possível, e ainda carregando seus pertences e evitando maiores estragos. Jogando um bloco de concreto na pobre Juliana, Carlos conseguiu desequilibrar sua predadora, lançando-a em cima de caixas e materiais de construção. Aquilo foi suficiente para que de forma rápida, o sobrevivente vencesse a distância até a liberdade.

Fechando a porta atrás de si, Carlos se deu conta que entrar e deixar a porta aberta não fora imprudência e sim uma maldita sorte. O cômodo de entrada daquele prédio só possuía uma única porta de destino, o que significava que a zumbi estava no pátio, ali fora, e fora atraída para dentro com o barulho da arma. Era melhor presa dentro e trancada do que desconhecida junto com ele, o que permitiria um ataque quando ele estivesse dormindo.

– Porra, essa foi foda…! Cacete, que emoção! – Colocando a arma no cós da calça, Carlos fez o sinal da cruz e olhou para o céu, agradecendo a São Jorge pela sobrevivência de mais uma situação difícil. Embora tivesse sido condenado pela sociedade, só ele e Deus sabiam o que ele havia passado para chegar até ali. Estava vivo e que se fodessem todos os mortos, pois ele pretendia permanecer respirando e caminhando enquanto seu santo de proteção lhe desse força.

Inseguro, Carlos deu uma volta no pátio conferindo a integridade da cerca. Poderia ser melhorada em alguns pontos, com o reforço de placas de madeira e um ou outro bloco e estacas em outros lugares, mas no geral era resistente o suficiente para lhe dar a calma necessária para voltar ao carro e fechar a porta atrás de si. O rádio estava em suas mãos, mas era preciso dormir. Estava acordado há praticamente dois dias e, curiosamente, mesmo naquela merda toda o sono que todo prisioneiro sente não custou a chegar. O rádio foi alocado no painel e a arma no colo, entre os dedos da mão direita. O suficiente para que ele fechasse os olhos e dormisse pelas próximas oito horas.

Carlos acordou quando já passava das cinco horas da tarde. Pela janela era possível ver que a escuridão em breve chegaria. O horário de inverno era cruel e implacável.

Assim que de fato despertou, o criminoso largou a arma no colo e esticou as mãos e ligou o pequeno aparelho novamente, trazendo estática de volta ao mundo. Sintonizado na frequência 94.7 MHz da banda FM, Carlos começou a passar ponto a ponto o que antes seriam as rádios da capital paulista. Além de estática, Carlos conseguiu sintonizar a frequência de emergência, mas o sinal estava muito longe e fraco para que pudesse ouvir alguma coisa. Era possível saber que uma voz falava alguma coisa, mas entender o que era dito já era uma história completamente diferente.

Energia 97 e Jovem Pan não existiam mais. Talvez fosse necessário pegar o carro e ir para outro lugar mais alto, ou rodar pelas ruas em busca de um sinal de emergência mais fraco. Talvez… “… E ouça agora Sweet Home Alabama do Lynyrd Skynyrd! Em breve voltamos com mais para essa São Paulo Morta Viva!”.

– Tem alguém! Tem alguém, caralho! Isso não é gravação, é coisa nova! – Carlos deu um murro no volante do carro, inadvertidamente tocando a buzina, mas naquele momento silêncio era o que ele menos queria fazer.

Fã de samba, ele teve que sofrer enquanto os Van Zant cantavam através daquele pequeno rádio a pilha Sony. Aquilo não importava, pois no meio daquele apocalipse bíblico o rock era a trilha sonora dos deuses. Ele não havia admitido, mas a hipótese de ser a única pessoa viva naquele mundo o assustava demais. Deus teria que ser muito cruel para tirá-lo da solitária, dar esperança e depois lança-lo sozinho em um mundo infestado de mortos-vivos, sendo novamente solitário. Após Lynyrd Skynyrd, o criminoso sentou e ouviu AC/DC, Guns and Roses e também Grandfunk Railroad. Nada daquilo era conhecido, mas ao mesmo momento era tudo maravilhoso.

– Se você está me ouvindo significa que você também sobreviveu. Procure abrigo durante a noite e venha para a avenida Paulista aqui na Kiss FM! Temos pouca comida e quase nenhuma água, então traga alguma coisa para comprar a sua entrada. Não vá para os pontos de encontro do governo e não ouça a rádio de emergência, tudo isso já acabou, eles se foram. Isso que você está ouvindo é uma gravação, mas eu estou aqui, nós estamos aqui. Venha para cá. Se você conseguir, solte um fogo de artifício durante a noite. Vocês sabem que nós estamos aqui, mas nós não sabemos que… E se… Vocês estão por ai ainda! Lembrem-se, comida e água! Caso você queria um lugar para ficar, venha para cá. Enquanto isso… ouça um pouco de rock para animar o seu dia e economize energia e bateria. Nós fazemos uma transmissão curta ao vivo todo dia as nove da noite. Se você vai soltar um rojão ou fazer um sinal de luz, nós estaremos na cobertura do prédio todo dia as oito e meia para ver. Se vermos, nós vamos avisar no rádio às nove. Só ligue o rádio nesse horário. A transmissão de música continuará enquanto existir energia – sim, ainda temos luz, e depois que ela se for enquanto os geradores aguentarem. Busque abrigo e lembre-se… Eles só morrem com um tiro ou uma pancada na cabeça. Tchau!

E os Beatles substituíram a voz daquela mulher que sem saber o trouxera de volta para a sociedade. Seguindo aquela ordem – coisa que Carlos nunca soubera fazer, o rádio foi desligado. Era 17:30 e ele tinha três horas para achar uma rajada de rojão e um lugar seguro para passar a noite. Se a transmissão era ao vivo, ele queria mostrar que estava vivo.

Respirando fundo, Carlos deu a partida no carro e engatou a ré. Iria dar o fora dali. Iria para Pirituba, bairro de periferia que possuía muitos bares e pouca lei, então a chance de encontrar um rojão de 12 tiros era consideravelmente alta.

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