Friday, 29 de March de 2024

Mais de trinta

Desterrados: Uma história de zumbi em São Paulo – Capítulo 6

Capítulo 6

– Eu sou a Luiza, qual seu nome? Meu pai falou que eu nunca posso andar com um estranho, então preciso saber o seu nome. – Enquanto falava, a garotinha flutuava sobre o banco do passageiro com os olhos fitados na janela do passageiro. Mortos-vivos debruçados sobre cadáveres ou moribundos ao chão sequer pareciam chamar sua atenção. A garota passava os pequeninos olhos pretos em um zumbi cortado ao meio por balas, cujas pernas largadas no asfalto contrastavam com o tronco jazia sobre a calçada. Como um cordão umbilical, um intestino pútrido ligava as duas metades amaldiçoadas. A cena era dantesca, mas não para a garota, que desviou os olhos novamente para o motorista.

– Carlos, meu nome é Carlos.

– Não tem um apelido? Carlos é muito chato.

O motorista pensou em como poderia explicar para a garota o significado e a origem do seu apelido. Fiel. Não era por sua devoção à igreja. Na verdade, fiel era o nome da corda que prende o revólver do policial à farda. Chamavam-no assim pois ele nunca deixava ninguém na mão e nunca deixava faltar armamento para o movimento. Ele era o Fiel da favela. Bandido, mas fiel.

– Não tenho um apelido, é só Carlos. E você? – Naquele momento os pneus da viatura deslizavam sobre o asfalto manchado de sangue de uma rua paralela à avenida Edgar Facó, via mais famosa do bairro da Freguesia do Ó. Sua mente não havia abandonado a ideia dos fogos de artifício, mas todo o caos que envolvia cada uma das ruas por onde passagem, e a visão constante de corpos em decomposição servindo como alimento para aqueles mortos-vivos o calou por longos e solitários minutos.

Antes que a garota pudesse falar, o rádio policial colado ao painel do veículo ganhou vida. Embora estivesse ligado e com todas as luzes piscando vigorosamente, até aquele instante nenhum ruído fora transmitido pelo equipamento. Luiza não se inquietava com aquilo, mas aquele silencio era especialmente enervante para Carlos, que se acostumou com a imensidão de vozes propagadas pelo autofalante do dispositivo em cada uma das vezes em que ele foi transportado no porta-malas de um camburão.

– Na escuta, câmbio? Chamando carro M-15240. Na escuta. – Embora nunca tivesse estudado sobre o funcionamento da força policial, Carlos sabia que existiam funcionários específicos para o setor de comunicações, e aquilo explicava a mesma voz ser ouvida com frequência, em viaturas e dias diferentes. Ele conhecia a sonoridade de pelo menos quatro policiais distintos, mas aquela voz que finalmente quebrou o silêncio era estranha. Quem o chamava? De qualquer maneira, aquilo não importava muito. Pela primeira vez na vida um sorriso foi estampado em seu rosto pelo som de um policial. O fato de alguém chama-lo no rádio não só significava que havia outra pessoa viva, mas que também existia ainda estrutura tecnológica naquela cidade abandonada por Deus.

Carlos diminuiu ainda mais a velocidade do automóvel, reduzindo de 30 para 20 quilômetros por hora e apanhou o bocal do rádio. Olhou para a garota, que o fitava curiosamente. Se ele não era policial, o que estava fazendo com uma viatura? Mais importante ainda, como é que outra pessoa sabia que ele estava ali? Será que ele era policial e tinha mentido para ela?

– Tô aqui. – Foi tudo o que saiu dos lábios do antigo morador do Centro de Detenção Provisória de Pinheiros. Se havia aprendido alguma coisa em toda sua vida é que policial bom era policial morto, e o simples fato de alguém pudesse confundi-lo e imagina-lo com um porco fardado era repulsivo e ofensivo. – Quem tá falando?

– M-15240, quem faz as perguntas aqui sou eu. Quem é você? O que você está fazendo com essa viatura? Quem é essa garota com você? – Ao ouvir aquilo, a menina girou em cima do banco como se seu corpo fosse a cabeça de uma coruja, e olhou para trás e para o teto da viatura. Na doce inocência das crianças, ela procurava por uma câmera escondida. Nada, não havia nada ali, não que ela pudesse encontrar.

Carlos não era idiota. Não iria bancar o imbecil perguntando como é que sabiam que ele estava com a garota no carro. Não era um chute, obviamente, então não adiantava negar nem tentar enrolar. Ele precisava assimilar o fato e seguir em frente.

– Ainda está aí, M-15240? – O tom da voz, embora entrecortado pela distância e pela robotização da rede sem fio, deixava transparecer um certo desapontamento. Parecia que a pessoa do outro lado da linha esperava que Carlos perguntasse quem era ele e como ele sabia de tudo. Era uma pena não usar um discurso ensaiado tão arduamente. Era realmente uma lástima não poder proferir um xingamento ensaiado mentalmente durante uma discussão com um superior, assim como era uma pena não usar uma frase de efeito preparada para um apocalipse zumbi.

– Sim, estou esperando. O que você quer? – Talvez fosse arrogância por parte dele, mas ele estava em um carro de polícia roubado e os donos provavelmente estavam mortos. Além disso, ele tinha um histórico criminal que não aliviaria as suspeitas contra ele. Aos olhos da sociedade uma vez bandido, sempre bandido. Ouviu isso da sua mãe e aquilo era um cimento que colava à alma e não era dissolvido facilmente. A mão esquerda que sempre ficava vigilante sobre a arma foi os lábios, fazendo o símbolo universal do silêncio para a menina, que agora o fitava interessada no desenrolar da conversa. Mesmo com a cabeça da mãe obliterada pelo chumbo, aquela conversa era muito mais interessante do que ficar trancada dentro de casa, tendo que alimentar sua progenitora com através de um cabo de vassoura.

– Bom, gosto de pessoas objetivas. Olhe para a sua direita, na esquina, em cima da banca de jornal. Sim, ali. Pisque os faróis. – Ao fazer conforme o indicado, Carlos moveu os olhos imediatamente para a direção que o homem indicou. A viatura rolava sobre o asfalto suavemente naquela rua abandonada e coberta de lixo, e por 20 metros ele serpenteou entre carros abandonados e corpos abandonados para apodrecer no meio da via. Ocasionalmente o automóvel dava um solavanco seguido de um barulho semelhante ao partir de uma melancia. Aquilo significava que um crânio fora partido ao meio. Na esquina, entre a banca de jornal e um zumbi que olhava um pôster de um time de futebol petrificado, no exato local indicado pela voz metalizada, um fino poste de metal sustentava uma câmera de vigilância. Orgulhosamente patrocinada pelo governo estadual, aquele artefato tecnológico agora era sua única ligação com o lado de lá, que até onde ele sabia era o lar de todos os cretinos e arrogantes que sempre o olhavam de cima de seus altos saltos e olhos julgadores, e que agora assistiam à destruição da humanidade através de pequenos monitores de Circuito de Televisão Fechada.

– Escute bem o que eu vou falar pois não tenho vontade de repetir tudo para alguém como você. Eu sei que essa viatura estava no presídio, então ou você é um policial, o que não é verdade pelo jeito como você fala ao rádio, ou você é um funcionário administrativo, o que não é verdade, pois você foi muito evasivo, ou você é um bandido. Isso significa que você não tem muita escolha, não se for esperto. Se eu estou certo, me dê um sinal e eu continuo a falar. Tenho uma proposta a te fazer e ela vai te tirar dai, com a ficha limpa e um futuro novo, ou pelo menos o que podemos considerar que seria um no mundo de hoje. Está ouvindo?

Olhando para a garota, que agora se encolhia contra a porta, afinal agora ela sabia que seu salvador era um bandido, Carlos respirou fundo e ponderou suas opções. Nem em um mundo como aquele as pessoas deixavam de agir daquela maneira prepotente com ele. Em outros dias ele teria ficado irritado e arrumaria um ou dois motivos para que o idiota visitasse o hospital. Não, aquela era uma daquelas situações extraordinárias, e isso exigia todo um cuidado especial. Ele precisava daquele cara, e com isso dois dedos de sua mão esquerda puxaram para trás o seletor do farol do carro, piscando uma única vez as luzes altas.

– O que você tem para me falar? – Naquele momento o pé saiu do acelerador por um instante e aquilo quase custou caro demais. Escondido atrás de um carro abandonado, um zumbi se jogou em cima da porta do motorista. Anos depois, caso Carlos contasse aquela história em uma mesa de bar, muitos diriam que aquela era apenas mais uma mentira dos anos de apocalipse, mas era a mais pura verdade. Em um daqueles momentos em que as estrelas se alinham e tudo é possível, ao se jogar em cima da porta o zumbi havia segurado a maçaneta da viatura, e com o movimento do corpo o morto-vivo abriu a porta destrancada do carro, mesmo ele se lembrando de ter trancado a mesma.

Como a mão esquerda era inútil em qualquer destro, Carlos teve que largar o volante e segurar a pistola com a mão direita. Não houve qualquer prática ou combinado, a menina apenas soltou o cinto de segurança e segurou o volante com a mão direita, ficando de joelhos no banco e apoiando o corpo com a mão esquerda no banco do motorista. Ela havia praticado aquele movimento diversas vezes com o pai, que às vezes a deixava conduzir o carro quando a rua estava vazia, e ele com algumas latas de cerveja dentro de si.

Sentado em uma confortável cadeira de escritório, com estofado de couro e rodas cromadas, o homem do outro lado do rádio assistia através de imagens em baixa resolução e preto e branco, e com o cu na mão, por assim dizer. Se aquele sujeito morresse seria uma pena, afinal ele tinha um pepino nas mãos para resolver e o senhor Jesus Cristo havia presenteado seu dia com a solução perfeita. A mão direita do homem segurava o rádio próximo aos lábios, e a outra, imprestável assim como a de Carlos, apertava repetidamente uma pequena bola de borracha, receitada pelo médico como uma forma imbecil de combater o estresse que o trabalho policial proporcionava. Massagear aquela esfera sempre lhe soou extremamente efeminado, mas naquele momento, era aquilo ou a arremessar algo contra a parede. Squich, squich. A bolinha continuava sendo comprimida entre os dedos, o que significava que o homem conservava a calma e a sanidade, pelo menos naquele momento.

Com o pé do criminoso fora do acelerador, o baixo índice de progressão sobre o asfalto facilitou com que o morto vivo segurasse na maçaneta da Blazer com firmeza. A mão direita que já estava em um estado avançado de putrefação, foi erguida ao ar como um punho desafiador ao conclamar uma multidão de mortos-vivos a uma rebelião, e em seguida mergulhou dentro da viatura em busca de algo ou alguém para segurar.

Como dizia a sabedoria popular, falar era fácil, difícil era fazer. Para Carlos os segundos tornaram-se minutos, e com o tempo transcorrendo em seus olhos em câmera lenta, o gatilho da pistola foi apertado, mas nada aconteceu. Era por isso que ele odiava armas automáticas, aquelas merdas sempre engasgavam no momento errado e deixavam você literalmente com o pinto na mão como única arma. Seu dedo indicador tentou provocar uma pequena explosão dentro do cano da arma pela segunda vez, mas nada aconteceu novamente. Era oficial: ele tinha em mãos o peso de papel mais inútil do mundo. Ainda com os gritos da criança soando disformes em seus ouvidos, Carlos largou a arma no chão do carro, que caiu sobre o tapete de borracha no mesmo instante em que a mão podre do zumbi passou a míseros centímetros do seu rosto. O homem afastou de forma instintiva o corpo da porta do carro, aproximando-o o máximo possível da garota ao seu lado. Os olhos marrons de Carlos testemunharam as unhas sem vida e que sem dúvida haviam continuado a crescer mesmo após a morte deslizar no ar a sua frente. Nos cinquenta centímetros que adentraram a viatura ele teve certeza de ver duas gotas de sangue e pus pingarem sobre sua calça e banco do carro. Quase. Três centímetros separavam seu olho esquerdo da mão negra. Ele não se lembraria de muita coisa daquele incidente nos meses seguintes, mas sua mente nunca se esqueceria do cheiro acre da podridão que invadiu suas narinas, e também daquele pequeno verme amarelado que surgiu sobre a superfície da carne pútrida como que para lhe averiguar, retornando para a danação que agora era sua moradia logo em seguida.

Mesmo aos berros, a garota continuava segurando o volante de forma decisiva, consciente de que sua vida dependia daquele pequeno ato. Carlos então tirou o pé direito do assoalho e virou sobre o banco, ficando com o corpo de frente para a porta. Ele colocou então a mão direita na coluna da porta, e usando o peso do corpo como um elástico de estilingue, enfiou o pé pela porta aberta e chutou o morto-vivo, acertando um pescoço em decomposição e que se desfez com o impacto. O golpe removeu a morte de sua porta e depois de ajeitar-se novamente sobre o estofado, Carlos tratou de fechar o habitáculo que agora garantia sua vida.

Ficando de frente para o horizonte agora estático, Carlos ligou novamente o carro após pisar na embreagem. Naquela confusão toda a viatura morrera assim como tudo a sua volta. O barulho da gasolina voltando a queimar foi seguido pelo cantar de pneus, e com o prisioneiro 45936-J finalmente com controle do volante, as duas toneladas de metal passaram por cima da rótula do zumbi que instantes antes tentou roubar-lhe um olho, e que ao cair enfiou as pernas embaixo do automóvel.

– Você está bem, moço? – A menina encostava na porta com o rosto em uma expressão contorcida de aflição. Cada pequeno pedaço de pele e músculo sob os cabelos da garota retratavam um misto de medo e desespero. Ela entendia o conceito de criminalidade e violência, e sabia que era perigoso ficar na companhia de um bandido, mas a perspectiva de ficar sozinha novamente a assustava ainda mais. Era um mundo cão embrulhando uma situação de merda, e a criança não sabia o que pensar. A tensão serviu como atalho para válvula de escape mais saudável para alguém daquela idade, e ela finalmente chorou, como chorou. – Eu quero meu pai! Eu não quero mais fugir de casa! Eu quero minha mãe de volta!

Em qualquer outra situação, ou se ele fosse outra pessoa, talvez as rodas do carro tivessem diminuído a rotação, mas a presença do apocalipse colocava a humanidade em segundo lugar, e ele não perderia nenhum segundo consolando a menina, pois fazer aquilo significava ficar exposto àquelas coisas. Não, ele precisava ser responsável, que a criança chorasse até a desidratação e a sede, mas ele não pararia. O sangue frio salvaria a ele e aquela menina, ele tinha certeza.

Com o dedo médio em riste, Carlos conduziu o veículo lentamente pela câmera de vigilância que assistia a tudo e a todos. Do outro lado de uma boa quilometragem de cabos, o homem na cadeira deu um murro na mesa, jogando a bola na parede. Sempre terrivelmente ansioso, ele havia avisado de forma imprudente seu superior que ele já encontrara a solução. Não, aquele puto precisava reconsiderar e teria que ser logo.

– Vocês estão bem? Eu vi o ataque. Na escuta, M-15240? Aconteceu alguma coisa? – O homem ficou de pé, segurando o microfone na mão direita, enquanto passava a mão esquerda nas medalhas do uniforme. Major Luiz Antônio Vieira Souza, comandante do pelotão de patrulha e supressão. Aquela nova patente finalmente fazia justiça a toda sua capacidade e só fora ganha após prometer ao vereador que acharia um jeito de resolver aquele problema, mas tudo havia um custo e aquele havia sido pago com medalhas e honrarias militares.

Carlos ouviu o rádio e pensou seriamente em ignorar aquela voz, mas aquilo significava ficar exposto aos choros da criança e a necessidade de confortar a filha de outra pessoa. Havia também a possibilidade da conversa servir como distração, calando a boca da pequena. De qualquer maneira, ele não tinha nada melhor para fazer.

– Tô na escuta.

Luiz soltou o peso na cadeira e respirou fundo. Ótimo, ele podia contornar a situação.

– Qual seu nome?

– Eu não vou te dar o meu nome, cara. O que você quer? Diz logo para acabar com isso… Câmbio – Um sorriso brotou no rosto do criminoso assim que aquela ultima palavra saiu por entre seus lábios. Era um sonho de criança.

– Eu tenho um problema e você tem outro. O seu é como sair de São Paulo sem morrer, e o meu é salvar uma pessoa antes que ela morra. Você me ajuda a achar essa pessoa, se ela estiver viva você traz ela para mim. Se ela estiver morta, sua parte do trato está cumprida e eu te dou o que eu prometer. O que acha?

– Depende do que você vai prometer para mim. – Interessada na conversa, Luiza diminuiu gradativamente a intensidade do choro. Para não dar o braço a torcer, Luiza continuou com a cara fechada e molhada, mas os soluços terminaram. Mesmo em um apocalipse zumbi, as crianças eram todas iguais.

– Eu tenho acesso a todas as câmeras que ainda funcionam na cidade. Tenho também um mapa de alguns abrigos que nós montamos para a tropa que combateu a infestação quando ela começou. O trato é o seguinte… eu te dou comida e armas para realizar essa missão, e se você cumprir o que eu estou pedindo, eu te digo como sair daí do jeito mais fácil. Se você me trair, você ainda será um assassino de policiais. Existem alguns voos de helicóptero feitos para monitorar a situação e em um desses voos, podem atirar em você. Claro, você pode abandonar a viatura e trocar de carro, mas eu ainda poderia te achar e, bem, você ficou tempo demais trancado… ainda sabe chegar de carro em algum lugar seguro? Você sabe quais são os lugares seguros?

Carlos olhou a criança e desenvolveu mentalmente aquela situação o mais rápido que possível. Ele quase não tinha comida para uma pessoa, imagina para duas. Além disso, sua arma estava ficando com pouca munição e o caminho dali até a avenida Paulista era longo demais para se confiar em tão poucas balas e tantos tiros necessários. Parecia uma tarefa simples, principalmente para um cara que já resgatara mais de uma vez presos de uma delegacia.

– E se você me trair?

– Bem, aí você está fodido. Você tem uma única opção, que é acreditar em mim.

Colocando o microfone do rádio sobre o colo, Carlos olhou para a garotinha. – E aí, o que você acha? Você decide. – No fundo ele faria o que ele bem entendesse, mas dar à garota uma certa sensação de autoridade talvez fizesse com que ela se tornasse menos arredia.

– Ele pode atirar na gente?

– É, ele pode. Mas ele pode não atirar.

– Mas e essa pessoa, ela está sozinha? Ficar sozinho é ruim… é perigoso! E se ela estiver com a mãe dela igual eu? – Um calafrio percorreu os braços da garota, que observou os pequenos pelos eriçados nas costas das mãos.

Sem saber a criança tocou em um tema sensível para ele. Mesmo sem ser um cidadão de bom coração e adepto da solidariedade, todos aqueles dias trancados naquele buraco escuro haviam mudado a forma que ele pensava. A solidão fazia buracos na mente de um homem, e a simples lembrança da contemplação da morte silenciosa atrás daquela porta de aço fez seus músculos retesarem.

Luiz levantou novamente da cadeira. Passando os dedos entre os cabelos grisalhos, ele ponderou se deveria dizer mais alguma coisa. A viatura não era visível em nenhuma das câmeras naquele momento, mas o senso comum dizia que ele deveria estar ponderando a oferta e as possibilidades, contemplando o que se abria diante dele. Ao passar os olhos em volta da sala o policial focou a vista sobre o quadro que repousava sobre a mesa em um porta-retratos barato, sem qualquer tipo de enfeite ou ostentação. A foto ali dentro mudava anualmente, mas era sempre um retrato da esposa e dos dois filhos.

– Onde está essa mulher? Como está a situação para onde a gente tem que ir? – Carlos olhava agora para o céu enquanto eles ganhavam acesso a uma rua pequena secundária. Estava começando a escurecer e embora ainda houvesse energia elétrica em algumas partes da cidade, ainda era complicado dirigir em meio a penumbra e escombros.

– Ok. Você está no bairro da Freguesia do Ó. A pessoa que você precisa procurar está na Serra da Cantareira. Sabe onde fica? – A mão esquerda do Major Luiz buscou o porta-retratos enquanto ele sentava-se sobre a mesa, largando o corpo magro na madeira. O homem do outro lado da linha era um marginal que merecia apodrecer na cadeia, mas ele não podia mandar feliz uma pessoa para a morte certa, principalmente se ele estivesse acompanhado de uma criança inocente.

Largando o microfone sobre a coxa, Carlos diminuiu a velocidade e olhou a menina, que acabara de bocejar. – Tá com sono, Luiza? – A menina fez que sim com a cabeça, com um tom esperançoso no rosto engordurado por lágrimas quase secas. Com a mão sobre o botão do comunicador Carlos rompeu novamente o silêncio. Pela primeira vez desde que saíra da penitenciaria o homem notou o estado em que suas unhas estavam, totalmente ruídas e encardidas. – Eu não vou a lugar nenhum hoje, a menina precisa dormir.

Não havia muito o que fazer naquela situação, e mesmo acostumado a sempre ter o controle e a ditar as regras, Luiz precisava ceder para que a corda não estourasse no lado dele, que naquele momento era o mais fraco na história, e mesmo a contragosto o policial sentou-se novamente na cadeira atrás do rádio comunicador. Pelo sistema ele viu que Carlos estava na altura do número 800 da avenida Ministro Petrônio Portela. Uma consulta rápida no sistema da polícia o levou novamente ao rádio.

– Vire na sua próxima direita no corpo de bombeiros. – Do outro lado do rádio, Carlos confirmou avistar o prédio. – Você está agora na rua Dr. Otávio Lobo, confere?

Ao volante Carlos ouvia as instruções incrédulo. Ele não pensou que quando o homem do outro lado do comunicador falou que ajudaria, que o suporte chegaria naquele nível de detalhe e especialização. Saber o que buscar facilitava a tarefa de navegar naquelas ruas repletas de destruição e de moribundos. Diversas casas pelas quais ele passou estavam com os portões escancarados, com sangue pelo chão e utensílios e roupas largados pelo chão. Quebrando a monotonia dos gemidos dos mortos e o silêncio da solidão apenas um latido distante de um cachorro, que chamava a matilha avisando ter encontrado um zumbi caído, em um estado recente de decomposição e sem poder se defender. A comida estava servida entre os arbustos de um consultório de ginecologia.

– Confere. Está tudo fodido por aqui. – A resposta do motorista fez Luiz relaxar um pouco, soltando o botão do colarinho que representava toda a sobriedade que seu cargo impunha. – Quando chegar no final você vai virar à esquerda, logo depois a direita e em seguida a esquerda de novo no final dessa rua. Copia?

Ao fazer a primeira curva e adentrar na pequena rua, Carlos viu uma cena se repetir: a cortina de uma das casas fechou. Fosse impressão ou não, ele não pararia naquele momento. Que se fodesse sua consciência, pensou ele. Mesmo para um presidiário, ele já havia salvo sua cota de pesos-mortos hoje.

– Ok, e agora? – Carlos conduzia a viatura apenas com a mão direita. A velocidade de deslocamento era baixa, o que lhe dava segurança suficiente para usar a mão canhota para segurar o microfone.

Consultando o mapa do bairro, Luiz retrucou. – Você agora está na avenida Itaberaba. – Carlos nunca havia passado por ali, mas as casas de classe média-baixa, cada qual com uma cor diferente na fachada o faziam se sentir em casa, no coração da Vila Alpina. Sim, ele havia passado mais de dez anos encarcerado na zona sul, mas nunca deixaria de ser um filho da zona leste.

– Daqui umas cinco ruas mais ou menos vai ter uma bifurcação, fique na direita. Logo depois você vai ver a sua esquerda um hotel chamado La Concorde. Eu não conheço, mas olhando aqui no sistema integrado de… – Não, ele não falaria sobre detalhes de segurança com um bandido – bem, o alarme não foi acionado desde o dia que houve a evacuação. Não posso afirmar com segurança, mas acho que a situação está tranquila.

Embora eles estivessem em uma avenida, o caminho estava razoavelmente desimpedido, embora uma vez ou outra ele fosse obrigado a subir com o automóvel sobre a calçada para conseguir passar. A cada vez ele fazia isso a menina se soerguia no banco para enxergar o que se passava do lado de dentro das casas. A cada uma residência que eles passavam, Luiza informava que a situação ali dentro alternava entre total destruição ou o mais simples abandono. Ali naquele bairro ao que parecia não havia espaço para meio termo, só desolação e dor.

A distância entre eles e o hotel foi vencida rapidamente, graças ao pé pesado do motorista sobre o pedal do acelerador. Se eles iriam dormir em um local era melhor chegar logo e se trancar lá dentro. Quanto mais demorassem, mais atenção chamariam. No fundo, Carlos não via a hora de dormir sobre um colchão decente, sem pulgas ou percevejos.

Carlos estacionou a viatura no meio fio, pois mesmo que o hotel possuísse um pequeno estacionamento na parte da frente, a entrada estava bloqueada por uma corrente esticada. Ao que tudo indicava, a situação ali estava tranquila. Se comparado com os imóveis na vizinhança, a concentração de entulho naquele estabelecimento era para lá de razoável.

– Ok, você chegou. Amanhã as 8 da manhã você entra no carro e me chama no rádio. Vou te passar as coordenadas para os mantimentos e as ferramentas. Ok? – Luiz poderia tentar intimidar e ameaçar o outro homem, mas os anos na polícia haviam ensinado a ele que bandidos eram como cachorros. Se você fosse tranquilo, eles eram dóceis, mas quando acuados eles ficavam irracionais e violentos. No mais, ele cumprira sua parte no acordo. Pelo menos até aquele momento.

– Beleza. – Carlos colocou o microfone no gancho e olhou o painel do carro. Ele havia consumido ¾ do combustível. Em um dia normal ele teria gasolina suficiente para ir e voltar da Cantareira e ir até a avenida Paulista, mas ter que rodar naquela velocidade e serpenteando pelas ruas consumia um bocado dele, do motor e do combustível. Por fim o homem desligou o carro e pegou o pequeno rádio que estava largado dentro do carro, além da arma que estava ainda no tapete de borracha. – Vem, vamos.

Antes de abrir a porta Carlos olhou pelo para-brisas e pelo retrovisor. Havia uma boa distância entre eles e os mortos-vivos mais próximos. A situação estava tranquila, mas ainda faltava algo para que ele pudesse dormir em segurança.

– Só um minutinho, Luiza… A gente já vai sair… – Carlos esticou ambas as mãos embaixo do painel, tateando em busca da caixa de fusíveis. Mas nem por um caralho ele deixaria seu veículo à disposição para o primeiro imbecil que passasse, ainda mais sabendo que sua passagem para sair daquele inferno encontrava-se no pequeno rádio embutido no painel. Os dedos sujos e experientes do homem removeram apenas dois fusíveis verdes e um vermelho. Sem aquilo o veículo não iria a lugar nenhum sem ele, e aquele era um sentimento extremamente reconfortante. – Pronto, vamos.

As travas foram abertas e ele desceu, segurando a porta para que a garota pulasse sobre os bancos e pousasse ao lado dele na calçada. Ele teve dois filhos, mas nunca conheceu nenhum. Talvez aquele fosse um recado de Deus que ele devia cuidar de uma criança, mesmo que não fosse sua. Aquele sendo um pensamento idiota, já que a maior probabilidade é que ambos terminassem sendo mastigados em um beco qualquer, mas mesmo assim a ideia pousou de forma discreta no subconsciente do homem parado ao lado da criança.

Segurando a pistola com a mão direita, Carlos fechou a porta da viatura com a ponta dos dedos esquerdos. – Vamos, vamos. Vem comigo. – Com um sinal de mão indicando o caminho, Carlos começou a caminhar em direção à entrada do hotel. A garota ia atrás dele segurando o pequeno rádio FM com ambas as mãos, completamente alheia à pequena multidão de zumbis que começava a se formar no começo da rua. Era a ponta da procissão de carniceiros que os perseguia desde que ambos escaparam da pequena casa que um dia foi um lar para ela. Um zumbi nunca conseguiria acompanhar a velocidade do automóvel, mas o deslocamento da horda acabava atraindo os mortos-vivos da região, que mesmo ficando para trás, sem qualquer tipo de contato visual com sua presa, seguiam o barulho do veículo como um urubu que bate as asas por quilômetros atrás do resquício de uma carniça. A multidão de presas aproximava-se enquanto eles venciam a pequena distância de três metros até a porta do hotel da parede verde. A passagem estava fechada e trancada, mas o muro lateral do estabelecimento poderia ser pulado.

Ao virar para tentar a sorte pelos fundos, Carlos ouviu um leve estalido e uma pequena fresta surgiu entre a madeira e a parede. O filho da puta do outro lado do rádio era policial, mas era também seu anjo da guarda. Luiz sorriu ao apertar o botão. Manter um bandido vivo não era algo em destaque em sua lista de prioridades, mas a promessa que havia feito para ganhar a promoção valia alguns sacrifícios. Embora a denúncia de corrupção houvesse ganho todas as páginas à época, aquele sistema integrado de controle e monitoramento de alarmes e sistemas de segurança foi útil.

A garota abriu a porta com a ponta do pé calçado. Carlos mirou para a penumbra com a arma engatilhada. O prisioneiro esperava com todas as fibras de seu ser um zumbi para lhe receber com um sorriso e uma oferta. Nos hotéis que ele ficava a proposta era sempre a mesma: pernoite ou avulso? Quer uma acompanhante?

Não, naquele momento a única coisa que os recebeu no pequeno hotel verde La Concorde, da Freguesia do Ó, foi a penumbra e o cheiro de pinho sol usado para desinfetar o chão. Aquele lugar estava imaculado e permaneceria assim, pois Carlos entrou e fechou a porta atrás de si, desabando ao chão em seguida. Suas narinas registraram de forma aliviada a ausência da podridão, deixada do outro lado da madeira em suas costas. O cheiro de material de limpeza significava que não havia um único morto ali dentro, e aquele era um sentimento libertador. Encostado na porta de madeira ele respirou profundamente, pois estava vivo, em liberdade e em segurança. Aquele fora um bom dia, sim senhor.

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